O ano em que conheci Tia Inácia


Hoje foi um daqueles dias que acordei com vontade de ouvir músicas antigas
e nem foi um daqueles dias de nostalgia que vivo às vezes
apenas acordei com essa vontade. Nada demais. Nada em mente.
Levantei, tomei meu banho como de costume e fui até a cozinha fazer o meu café.
Enquanto esperava a água ferver, liguei o computador e coloquei minha playlist Good times pra rodar
voltei pra cozinha, encostei na pia e fiquei ouvindo as músicas enquanto a água esquentava.
pensamentos aleatórios passavam pela minha cabeça, nada em especial
tinha acabado de acordar e meu cérebro estava reiniciando e logo o "sistema" estaria pronto pra funcionar.
A água ferveu e passei o café. bebí um copo caprichado pra acordar e acendi um cigarro.
Heaven de Bryan Adams começou a tocar e não sei porque, pois a música não tem nenhuma ligação,
me lembrei da Tia Inácia.

Tia Inácia era estagiária na escola que eu estudava na 1ª série por volta de 1982 
e ficava dentro da sala de aula ajudando a professora titular, que não me lembro o nome.
Me lembro perfeitamente do dia que conheci Tia Inácia, lembro como se fosse hoje
a professora titular nos disse que teríamos uma pessoa a mais na sala de aula
para nos ajudar com as tarefas e dar auxílio quando precisar.

Tia inácia era uma mulher de pouco mais de 20 anos eu acho, não tenho certeza
era branquinha, não muito alta e tinha os cabelos lisos nos ombros.
Ela se apresentou, perguntou o nome de cada um dos alunos e depois, foi para o fundo da sala.
sua mesinha ficava no fundo da sala e na mesma fileira da minha "carteira".
Todos na sala ficaram curiosos e sempre ficavam olhando pra ela
alguns faziam gracinha pra chamar a atenção e a professora titular sempre lembrava:
"Ela vai corrigir os cadernos de vocês, e quem não for bonzinho, vai ganhar zero."

Com o passar dos dias, nos acostumamos com a presença dela
ela sempre passava de carteira em carteira pra poder observar se estávamos fazendo as coisas direitinho.
Acho que Tia Inácia foi minha primeira "paixão". 
É até bobagem dizer isso, mas no fundo, acho que foi
Tinha enorme devoção por ela e sempre que chegava na sala de aula, a procurava, queria ver se ela tinha chegado.
Me lembro que sempre deixava algo errado de propósito no caderno, só pra ela vir corrigir
Ficava feliz quando ela chegava do meu lado, se abaixava e me ajudava a corrigir "meu erro".

Mamãe sempre me dava 50 centavos pra fazer meu lanche na escola,
pra mim era uma fortuna, me sentia poderoso com os 50 centavos.
Comprava meu lanche, mas sempre comprava 3 balas sortidas pra Tia Inácia
e sempre que ela via as balas na mesinha, abria um sorriso e eu me sentia muito feliz.
Certa vez, fiquei alguns dias economizando no lanche e não comprei as balas.
Não sei se ela observou essa falta das balas, ou não quis dizer nada.
Um dia, ela chegou de manhã, e na mesinha dela tinha uma super maçã
vermelha, novinha, enrolada em um papel colorido que vem nas caixas de frutas.
Junto com a maçã, tinha um bilhetinho meu.
Não me lembro perfeitamente do que disse, mas foi algo como:
"Fiquei uns dias sem comprar as balas, porque queria te dar algo especial"
E algo que me lembro perfeitamente: Fiz um coração com uma "flexinha" atravessada nele.
Me lembro que ela agradeceu e disse que ia levar a maçã pra casa.
Foi um dos dias mais felizes da minha vida. 
Mamãe achava que eu gostava muito da escola
porque queria ir todos os dias, mesmo quando não tinha aula.
Mas ela não sabia que eu queria ir, só pra ver a Tia Inácia.  
Os anos foram passando, e não sei o que aconteceu com ela,
a gente acaba perdendo as pessoas no meio do caminho  e não sabe onde encontrar.
Sinto saudade desse tempo, saudade da Tia Inácia
saudade do carinho que ela sempre tinha conosco.
Não concordo com essas perdas. Pessoas queridas deveriam ficar ligada a nós pelo resto da vida
mas nem sempre é assim, nem sempre a vida é tão boa quanto a gente gostaria.
O tempo já me levou muitas pessoas queridas, muitas pessoas que significavam algo pra mim
pessoas que gostaria de ter por perto até hoje
mas a vida não é perfeita, ela sempre escolhe os caminhos pra gente seguir
mesmo que sejam caminhos sinuosos e com muitos obstáculos.
A nossa infância passa tão rápido e mesmo assim, a vida sempre nos tira coisas boas
infelizmente, não há nada que possamos fazer.
Entre tantas coisas que tenho nas lembranças, Tia Inácia terá sempre seu lugarzinho reservado
sei que jamais poderei vê-la novamente
mas a memória dos dias que vivi perto dela, já me bastam pra sempre abrir um sorriso
ao lembrar da época em que estudei naquela escola.
Na época que eu sabia que em casa, tinha mamãe, e na escola, eu tinha a Tia Inácia.

Tia Inácia, sei que nunca vai ler isso aqui, mas saiba, que sinto muita saudade de você.

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Os anos de 1980



Costumo dizer que sou um cara privilegiado
Afinal, vivi toda a década de 1980
Toda, cada dia, cada mês e cada ano.
Muitos dizem: Ah, mas você era apenas uma criança a maior parte dela
Sim, eles têm razão, era apenas criança a maior parte dela
Mas é por esse motivo que a década de 1980 foi e ainda é a melhor parte da minha vida.
Não sei porque ou como isso acontece
Mas tenho uma facilidade imensa de lembrar de muitas coisas que vivi
Coisas que meus irmãos mais velhos e mamãe nem se lembram mais
Acredito que ter vivido nessa década, algo em mim ficou gravado
Como se fosse uma tatuagem ou implante em meu subconsciente
Não sei explicar ao certo o motivo de ter tanta paixão por essa década.
Nossa vida era muito difícil e mamãe tinha que se desdobrar pra cuidar da gente
Mesmo com todas as dificuldades, a gente era feliz, muito feliz.
As brincadeiras na rua com os amigos até tarde
quando a gente só voltava pra casa quando mamãe gritava na janela de casa.
Vez ou outra a gente dizia para mamãe que ia na casa do amiguinho, mas na verdade, íamos nos aventurar
pelas ruas do bairro e andávamos tanto, que quase nos perdíamos.
Tenho saudade dessa época, época das brincadeiras com bola de gude
Toquinho de madeiras que a gente ganhava de um marceneiro da vizinhança e servia pra gente montar nosso forte apache.
De todas as vezes que a gente vendia ferro velho pra poder comprar maria mole na casquinha
Só pra poder ter mais um bonequinho de soldado que vinha pregado nela.
De todas as vezes que a gente pegar peixe no rio pra montar nosso aquário na banheira velha que tínhamos no quintal.
De todas as vezes que a gente corria da velha bruxa que morava duas casas ao lado da minha
E a gente apertava a campainha da casa dela e saía correndo quando ela gritava que ia jogar a gente no tacho.
De todas as vezes que a gente ouvia o apito da maria fumaça e corria até a rua de baixo
Só pra vê-la passar e acenar para o maquinista e torcer que ele tocasse o apito pra gente.
Acredito que o maquinista também sentia saudade da infância, porque ele sempre que via a gente, apitava a Maria fumaça
E sorria vendo nossa alegria.
De todas as vezes que a gente simplesmente ficava sentado na porta de casa
Olhando o movimento da rua e contando quantos carros vermelhos passavam enquanto estávamos lá.
São muitas lembranças, lembranças que estão aqui guardadas com muito carinho
E que jamais se perderão.
É uma pena que a nossa vida de criança passa tão rápido
Às vezes, acho que isso é uma injustiça e que não poderia ser assim.
De qualquer modo, sou feliz por ter as lembranças sempre frescas na memória
Afinal, não é qualquer um que teve o privilégio de viver os anos de 1980.

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