Frequência modulada




Houve uma época em que o rádio ficava sintonizado praticamente 24 horas por dia. 
Anoitecia, amanhecia e meu velho amigo sempre estava por perto me fazendo companhia. 
Nos dias de hoje, quando a boa e verdadeira música é algo raro de se achar ao sintonizar qualquer Frequência Modulada, a grande rede me ajuda a  encontrar uma boa música, bem alí, ao alcance do mouse.
O rádio? Vai ficar guardado, poque não tem utilidade alguma, pelo menos por enquanto.




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Leite de Castro




Morava em São João Del Rei, cidade histórica de Minas Gerais e terra natal do ex presidente Tancredo Neves. Uma cidade de pouco mais de 100.000 habitantes cravada entre as belíssimas serras do Campo das Vertentes e que traz boas lembranças da minha infância.
Morava em uma das principais ruas que, de uma lado, dava acesso ao centro da cidade, e do outro, a uma longa avenida onde ficavam as fábricas. E é sobre esse lado que quero falar.
A Avenida Leite de Castro é uma dessas avenidas bem largas, arborizadas e que no meio dela, passava a linha férrea. A linha férrea cortava grande parte da cidade até chegar no pontilhão dos suicidas, onde de lá, iniciava seu caminho por dentro da serra. O pontilhão dos suicidas ficou famoso como o próprio nome diz, muitos se jogavam dele para a morte, e uma novela da Globo foi filmada na cidade e um dos personagens também achou apropriado pular de lá. 
Mas voltando a Leite de Castro, na época, era uma avenida movimentada, mas não tanto como hoje em dia. As pessoas ainda não tinha essa pressa exagerada que existe hoje em dia e a gente podia andar por ela tranquilamente.
A Leite de Castro era o caminho da escola e também de muitas aventuras. Afinal, a Maria Fumaça passava por alí diariamente, para a nossa imensa alegria.  E sempre que íamos pra escola, andávamos pelos trilhos, numa disputa para ver quem conseguia ficar mais tempo sobre os trilhos. A única pessoa que não disputava, era aquela que por sorteio, tinha que ficar observando se a Maria Fumaça vinha ou não. Ninguém queria ser atropelado e por isso cada dia um de nós ficava de observador.
Durante algum tempo a maria Fumaça passava por ali, mas não sei por que motivo, o trajeto dela foi alterado, ficando apenas os trilhos. Mas mesmo assim, a gente se divertia muito no caminho da escola.
Em um dos lados da Leite de Castro, existia uma fábrica de tecidos. Haviam outras fábricas, mas essa, era diferente. Ela tinha umas "janelinhas" imagino que seria uma espécie de exaustor, e elas ficavam se mexendo fazendo um barulho que posso ouvir até hoje. Tap tap tap tap tap tap tap. E sempre que passava por ela, sentia um cheiro gostoso. Não era cheiro de tecido novo, era algo como uma mistura de algodão com cheiro de outros tecidos misturados. Não sei dizer ao certo o que era, apenas sei que gostava muito.
Durante um bom tempo, meu caminho da escola foi assim, em meio aos trilhos da linha férrea e aquele som, Tap tap tap tap tap tap tap seguido daquele cheiro. Minha memória afetiva, como diz minha mulher, é recheada de cheiros, gostos e sons. Eles me remetem a épocas que viví e na maior parte delas, sinto muitas saudades.
Muitos por aí costumam dizer que o tempo apaga as coisas. As lembranças se vão. Não concordo. As lembranças, as boas lembranças ficam pra sempre. de um jeito ou de outro, elas ficam pra sempre dentro de gente e mesmo que parecem esquecidas, vez ou outra um cheiro, um som ou um gosto nos lembram desses momentos.
E foi assim, em um desses momentos que me lembrei da Leite de castro e sua fábrica de tecidos. Na empresa em que trabalho, recebemos alguns fardos de estopa. E cada vez que pego um pacote delas, me lembro com muita saudade dos meus tempos de menino. Quando ia para a escola e passava em frente a fábrica, com seu cheiro e seu inconfundível som das janelinhas.
Às vezes me pego com um pacote de estopas nas mãos sentindo seu cheiro e recordando. 
Tap tap tap tap tap tap tap







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Funeral




O ano de 2000 foi muito complicado pra mim. Desemprego, dificuldades em casa e ainda minha mulher na época andava insatisfeita com muitas coisas e só reclamava.
Embora parecesse calmo, minha cabeça ficava a mil, e entre bicos aqui e alí, conseguia algum dinheiro para ao menos comprar algo pra comermos e quitar contas básicas de casa.
Não era fácil, não mesmo. 
Quando chegava em casa quase de noite, tomava um banho e comia o que tinha e muitas vezes ficava nó fundo de casa brincando com um gatinho amarelo e branco que encontrei na rua. Assim, conseguia aliviar um pouco a cabeça pra poder começar tudo novamente no outro dia.
Foram seis ou sete meses muito complicados. Mas por sorte, consegui um trabalho em uma atacadista de tecidos. 
Trabalho simples, salário baixo e alguns benefícios depois de um tempo de casa.
Nada mal, pra quem não tinha nada, apenas dívidas acumuladas e uma esposa insatisfeita. Mas isso era uma pequena luz no fim do túnel e eu via que ao menos, o próximo ano seria melhor e realmente foi, tudo mudou.
Mas não é sobre isso que quero falar. É sobre um telefonema e uma viagem que não esperava.
Pouco antes da metade do ano, mamãe me ligou um dia a tarde. Queria saber como estávamos e como sempre, dizia que estava tudo bem, tudo em ordem. 
Nunca disse a ela sobre as dificuldades desse ano para não deixá-la preocupada. Eram sempre as mesmas respostas: Tudo bem, Tudo tranquilo.
- Seu pai morreu hoje de manhã. Ela disse
- O que aconteceu com ele? Perguntei
- Problemas de saúde. Ela disse
Não tinha o que dizer, e apenas respondi que "fazer o quê não é? É a vida.
- Seus irmãos irão amanhã de manhã e você deveria ir também. Ela disse
- Não sei. Sinceramente não tenho o que fazer lá. Disse
Conversamos mais um tempo sobre isso e outras coisas e nos despedimos. De um lado, ela estava triste com a notícia e do outro, eu não sentia nada. Pode soar como ignorância, mas não. Apenas não sentia nada naquele momento.

Pensei muito durante a noite sobre o ocorrido. Ainda não estava decidido se iria ou não. Francamente, não via sentido algum ir até lá e rever pessoas que não via ha anos e não mantinha contado algum.
No outro dia bem cedo meus irmãos chegaram em casa. Tinha acabado de acordar e estava passando meu café.
Eles estavam em silêncio e um pouco abatidos. Afinal, tiveram contato com ele bem mais que eu. De minha parte, estava calado também, mas por não saber o que dizer e como agir.
- Só preciso de um tempo pra tomar um banho e vestir uma roupa. Eu disse
- Voltaremos hoje mesmo. Meu irmão disse
- Ótimo. respondi
Entramos no carro e partimos. A viagem era longa e o dia já mostrava que seria quente e estranho. 
O clima dentro do carro estava estranho. Falei muito pouco durante toda a viagem. 660 Km de quase silêncio.  Tentava encontrar algum assunto mas não tinha nenhum. O que mais me passava pela cabeça, era como estaria aquela cidadezinha que não visitava ha muitos anos desde que minha avó se foi.

Chegamos por volta das 13:30 e fomos direto para o local do velório. Quando descemos do carro, as pessoas que estavam lá, nos olhavam com aquela cara de pesar. Alguns não nos conhecia, outros sabiam quem éramos. 
Na porta, uma tia nos recebeu aos prantos. Disse que estava com saudades mas não queria ter nos visto naquela ocasião. ( Ok Ok Ok, fiz que acreditei ) Preferia que fosse em algo alegre. 
Olhei pra dentro e ví o caixão rodeado de pessoas. A mulher, as enteadas e alguns amigos. Não reconheci ninguém. Com exceção da minha tia, não conhecia mais ninguém. As pessoas chegavam e nos cumprimentavam e eu me sentia o estranho no ninho. 
Meus irmãos estraram primeiro e eu fiquei do lado de fora observando.  Ao lado do caixão diziam coisas pra sí mesmos e pra ele. Falaram com as pessoas que estavam perto e depois saíram. 
Entrei e no caminho, percebi os olhares me acompanhando. Sabe-se lá o que pensavam e também não me importava. Cheguei ao lado do caixão e olhei aquela pessoa deitada, com as mãos cruzadas no peito. 
Era estranho, pois não sentia absolutamente nada. Aquela pessoa era um estranho pra mim, mesmo tendo o visto alguns anos antes, ainda era um estranho.
Fiquei uns dois ou três minutos ali parado, fiz o sinal da cruz, recebi cumprimentos de algumas pessoas e saí. Meus irmãos estavam falando com minha tia, atravessei a rua em direção a uma padaria. Comprei uma lata de coca cola e fiquei do lado de fora encostado na parede. Acendi um cigarro e fiquei observando as pessoas do outro lado da rua.
Voltei para onde estavam meus irmãos e tia e fiquei conversando um pouco com eles. Minha tia continuava com as promessas de sempre. Sempre manteríamos contato e blá blá blá. Coisas que nós e ela sabiam que não aconteceria. Mas enfim. Pouco tempo depois, fomos informados que iríamos para o cemitério. 

A rua de acesso ao cemitério era curta. Mas a subida nos deixava um pouco cansados. A caminhada durou uns 10 minutos, pois todos iam a passos lentos. As pessoas que levavam o caixão iam na frente, e nós seguíamos mais atrás. 
O sepultamento foi rápido. Já estava tudo preparado quando chegamos e apenas tivemos que esperar o funcionário do cemitério retirar os restos mortais da minha vó e guardar em uma das gavetas da família.
Ficamos mais um tempo com os familiares, nos despedimos e fomos almoçar para em seguida pegar estrada novamente. Fiquei com a estranha sensação de dever cumprido. Fiz o que tinha de ser feito e só pensava em voltar pra casa. 
A viagem de volta foi mais tranquila. Mesmo cansados, a gente se divertiu um pouco pelo caminho. Conversamos bastante até chegarmos.
No final das contas foi até bom ter ido. Assim, ninguém poderia dizer que nesse momento eu virei as costas pra ele. Continuo seguindo minha vida sem dever nada pra ninguém.
Vida que segue.







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Elisa Camargo




Foi em uma aventura com alguns amigos que, aos 15 anos conheci Elisa Camargo.
Fiquei por algum tempo parado em frente a ela, em silêncio observando seu rosto, seus olhos, seus longos cabelos lisos.
Elisa tinha uma boca mediana e olhos maravilhosamente negros. Seu olhar era diferente, mostrava uma serenidade que poucas vezes tinha visto.
Aquilo me encantou. 
Fiquei um bom tempo alí, parado. Sem dizer nenhuma palavra.  Apenas observando.
Enquanto meus amigos continuavam com suas aventuras, permaneci ali.
Sentia como se ela estivesse retribuindo o olhar e talvez quisesse me dizer alguma coisa. Sentia algo gostoso no ar.
Um de meus amigos me chamou. Me virei e fui em direção à ele. Mas antes, voltei e cometi um pequeno delito: Roubei sua fotografia.
Coloquei o pequeno retrato em preto e branco no bolso e fui de encontro dos meus amigos.
Fiquei a tarde toda lembrando daquela mulher. Imaginando o que ela fazia, onde morou e o porque estava alí naquele momento.
Já em casa, após tomar meu banho e jantar, fui para meu quarto. Liguei meu rádio vermelho, deitei na cama e fiquei olhando aquela fotografia.
Mil coisas passavam pela minha cabeça. Imaginei-me conversando com ela, contando as coisas que gostava de fazer e a conhecendo um pouco mais.
Com o passar do tempo, acabei dormindo. A fotografia ficou ao meu lado. 
Em algum momento de um sonho qualquer, Elisa apareceu. Estava com um vestido longo com algumas estampas e com seus longos cabelos negros soltos.
Segurou minhas mãos e disse que gostou muito da minha visita e pediu-me para ir vê-la mais vezes.
-Preciso te pedir uma coisa. Ela disse
-Pode pedir Elisa. Respondi
-Quero que amanha você volte e devolva a fotografia. Ela me disse sorrindo
-Não posso ficar com ela? Achei linda. Eu disse
-Não. preciso que devolva, pois é a única que me restou. Ela disse.
-Tudo bem, amanhã volto e deixo onde peguei. Disse
Ela sorriu e foi embora.
Na manhã seguinte fiquei com aquele sonho em mente. Era sábado e não tinha o que fazer. 
Troquei de roupa e disse pra mamãe que ia sair. Voltaria só mais tarde.  Coloquei a fotografia no bolso e saí.
O caminho até Elisa demorou 20 minutos. 
Entrei em silêncio e assim como me foi pedido, devolvi a fotografia. Pedi desculpas por ter levado e fiquei mais um pouco com ela.

As visitas se tornaram frequentes. 2 vezes por semana ia ver Elisa. Algumas vezes levava duas ou três rosas pra ela.
Mas na maioria das vezes, ficávamos em silêncio. Um olhando pro outro.
Em algumas visitas, inocentemente contava sobre minhas coisas, o que tinha feito ou o que queria fazer.
Mas quase sempre, era apenas silêncio. Puro silêncio.
Em uma dessas visitas, estava sentando no chão em silêncio quando chegou um senhor de pouco mais de 60 anos.
Ele tinha um jeito simplório e estava fumando um cigarro de palha.
-Trabalho aqui há mais de vinte anos e você é a primeira pessoa que vejo visitar essa moça. Ele disse
-Sério? Ninguém vem aqui para vê-la? Perguntei.
-Não. Uma senhora veio umas 3 vezes e depois não voltou mais. Ele me disse
-As pessoas acham que quando alguém se vai, não precisam mais serem visitadas. Mas isso é errado. É nesse momento que mais precisamos de alguém do lado. Ele me disse
-Então quer dizer que somente eu venho visita-la? Perguntei.
-Sim meu rapaz, e espero que continue. Tenho certeza que ela gosta das visitas. Ela se foi muito jovem, tinha uma vida inteira pela frente. Não é justo que ela fique sozinha assim. Ele me disse
-Imagino. Saiba que voltarei outras vezes. Disse
O velho se despediu de mim e foi continuar seus afazeres. E eu, fiquei alí com Elisa. Como sempre, em silêncio.
Após um tempo me levantei. Olhei para a fotografia e lí a mensagem na lápide: 
"Para sempre em nossos corações" 
Elisa Camargo - 19/05/1962 - 02/10/1985

Por quatro anos, visitei Elisa. Ninguém sabia dessas visitas, nem família, nem amigos. Apenas aquele velho senhor.
Me mudei pra outra cidade e nunca mais a ví. Não sei se ainda está lá.
Jamais voltei. Pode ser que algum dia eu vá até lá.
Não sei.
Espero que alguém a esteja visitando, e trazendo um pouco de calor e companhia.
Aqueles mármores são frios e sem vida. E ela gosta de receber visitas.








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Na ponta do dedo




O queridinho da seleção canarinho quebrou o pé
ou melhor: apenas o dedinho
Nada de tão grave, nada de tão relevante
Em toda a mídia, notícia de primeira página
Especialistas debatem sobre o tratamento
Sobre o tempo de recuperação
Mesas redondas nos programas de tv
Times colocam a frase #forçafulano em suas camisas
Tudo isso sendo dito como se fosse o maior acidente do planeta.
É patético, é ridículo.
Uma ala inteira de hospital reservada para tratamento de um dedinho
Enquanto isso, pessoas morrem lá fora
longe da mídia
dos especialistas
Preenchendo apenas mais um campo 
nas páginas policiais.




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Cine Bristol

Por muitos anos, tive o privilégio de frequentar o Cine Bristol em Ituiutaba.
Sua sala aconchegante com poltronas de madeira e estofamento macios eram bastante confortáveis.
As paredes da entrada da bilheteria, até o corredor de acesso à sala eram cheios de quadros com posteres de filmes. 
E nesse mesmo corredor, ainda podíamos comprar guloseimas na bomboniere da "tia" Carmem.
O "seu" João era uma figura muito bacana. Ele ficava na entrada da sala recolhendo os ingressos. Cada ingresso entregue, era devidamente rasgado ao meio e jogado dentro de uma urna com laterais de vidro. Ele dizia que fazia isso pra mostrar que não reaproveitavam os ingressos.
Minutos antes de iniciar a sessão, Seu João fechava as cortinas da sala e apagava as luzes. Com isso, ele nos mostrava que o filme iria começar.
Às vezes, ele entrava na sala acompanhando alguém que chegou atrasado. Com sua lanterninha em mãos, ele acompanhava a pessoa até a poltrona mais próxima e também aproveitava para dar uma olhada na sala para ver se não tinha alguém fazendo bobagens.
O Cine Bristol foi o último cinema de rua que frequentei. E hoje, quando passo em frente à ele, fico muito triste em ver que um excelente cinema chegou ao fim, restando apenas o cômodo fechado se acabando com o tempo. 
Ótimos filmes e momentos vividos ali. 
Infelizmente o que temos hoje, são salas frias de cinema das grandes redes. Com sua pipoca e refrigerantes sem graça e atendimento robotizado.
Podem me chamar de velho, mas prefiro o romantismo do cinema de rua do que essas salas modernas e sem graça dos shopping centers.




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